
Juntos,
os integrantes enfrentam o sol embaixo das lonas pretas ou a chuva
forte que entra nos barracos e molha os poucos os pertences. / Danilo
Ramos
Ocupação em São Bernardo do Campo se torna referência na luta por direito à moradia em SP
Há exatos dois meses um grupo de 500 pessoas reuniu coragem, esperança e um sonho em comum e aceitou o desafio de travar uma luta por moradia sem data pra terminar.Enfrentando truculência de vizinhos, isolamento pela guarda municipal e decisões judiciais consideradas preconceituosas, os moradores seguem dando lições de organização, solidariedade e resistência.
Entre a maioria deles há um fato em comum: o desemprego, que os impossibilitou de continuar pagando aluguel. “Eu trabalho desde os 13 anos, tenho dois filhos e há um ano estou desempregada. Não tenho mais condições de pagar aluguel, mas as lições de solidariedade que aprendi aqui foram gigantes. Vocês não sabem o que é abrir o armário e não ter um pão para seu filho”, disse uma das moradoras, que se identificou apenas como Mônica.

“Viemos em busca de uma moradia própria, mas quando chegamos aqui vemos que nosso problema é pequeno perto do problema do outro. O problema do companheiro é nosso problema também e nós procuramos resolver e sermos úteis. O movimento sempre ensinou solidariedade e respeito. Aqui ninguém sonha sozinho”, disse outra moradoras, que preferiu não se identificar.
Organização
Juntos eles enfrentam o sol embaixo das lonas pretas ou a chuva forte que entra nos barracos e molha os poucos os pertences que possuem.

Desde o primeiro dia, a Guarda Municipal isola a rua que dá acesso ao terreno, dificultando a entrada de doações. Os ocupantes enfrentam também reações de vizinhos contrários à ocupação, que chegaram a fundar, em setembro, o Movimento Contra Invasão em São Bernardo do Campo (MCI), que cobra uma postura mais incisiva do poder público e da Justiça na reintegração de posse da área.
Um morador de um condomínio chegou a atirar com uma arma de fogo contra a ocupação e atingiu no braço de Audinei Serapião da Silva, que foi operado na sequência e passa bem. O movimento orienta a não revidar provocações.
Proposta
Os ocupantes querem que o terreno seja destinado à construção de prédios pelo Minha Casa Minha Vida Entidades, na faixa 1, para famílias com renda mensal de até R$ 1.800. Para isso, o movimento reivindica que a área seja desapropriada pelo Governo do Estado ou comprada pela Caixa Econômica Federal.
Para pressionar o governador Geraldo Alckmin (PSDB), milhares de manifestantes, entre moradores da ocupação e apoiadores, marcharam 23 quilômetros, saindo da ocupação até o Palácio do Governo, na zona sul da capital paulista, na terça-feira (31).

Na ocasião, eles conseguiram uma audiência com os secretários de Habitação, Rodrigo Garcia, e da Casa Civil, Samuel Moreira. Garcia marcou uma nova reunião para o próximo dia 10 e se comprometeu a “fazer uma análise de cadastramento de demanda específico para a ocupação de São Bernardo do Campo e conhecer a realidade de cada uma das famílias”.
“Depois do governo de Michel Temer [PMDB] tem sido muito difícil qualquer liberação de moradia. O orçamento deste ano (do governo federal) para moradia popular é de 35 mil casas para o Brasil e nem isso eles fizeram”, disse coordenador geral do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, em uma reunião realizada na segunda-feira (30) com os moradores.
O terreno ocupado fica entre a fábrica de caminhões Scania e um condomínio de prédios residenciais e pertence à construtora MZM. Em 2014 a prefeitura de São Bernardo, ainda na administração de Luiz Marinho (PT), notificou a proprietária devido ao não cumprimento de função social da área e exigiu que ela fosse parcelada, o que nunca ocorreu.
Passados três anos a área foi ocupada pelo movimento e a reação veio de forma imediata: a construtora ingressou com pedido de reintegração de posse e no mesmo dia conseguiu liminar do juiz Fernando de Oliveira Ladeira autorizando a Polícia Militar a executar a ordem de despejo.

Com um recurso, o movimento conseguiu suspender temporariamente a decisão, porém, na última audiência, realizada em 2 de outubro, os três desembargadores da 20ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiram, por unanimidade, manter a reintegração de posse.
Ela ficou condicionada, no entanto, a uma reunião do Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (Gaorp), marcada para 11 de dezembro, com representantes do governo federal e estadual, da prefeitura de São Bernardo e com a construtora. “Nossa proposta é que haja uma desapropriação pelo estado e o financiamento para construção pela Caixa, porque as pessoas aqui vão pagar por suas casas”, disse Boulos.
Apoio
Na noite de segunda-feira (30), a ocupação foi foco de uma polêmica: a Justiça Paulista proibiu o cantor Caetano Veloso de realizar um show de apoio na ocupação, o que causou comoção de militantes apoiadores e artistas. Naquela noite, o vereador de São Paulo e ex-senador Eduardo Suplicy (PT) dormiu em um dos barracos em apoio ao movimento.

“Nós viemos aqui com vontade de cantar e com a missão de cantar, para mostrar solidariedade ao movimento que vocês levam à frente. Mas como já sabem, manobras foram feitas para que o show não pudesse acontecer. No entanto estamos aqui, estamos juntos. Eu, os outros artistas que estão aqui e vocês”, disse Caetano Veloso no palco da ocupação, acompanhado dos cantores Criolo e Emicida, enquanto era aplaudido por um público de milhares de pessoas. “É a primeira vez que sou impedido de cantar no período democrático”, disse.
Boulos considerou a proibição “absurda” e “ilegal” e a classificou como censura. “O que eles fizeram foi dar mais força e ânimo para tomarmos as ruas. Nossa melhor resposta à censura e falta de democracia é exercer nosso direito de manifestação e nossa democracia, e disso não vamos abrir mão. Já estamos dando resposta, porque o prefeito [Orlando Morando, do PSDB] deve estar morrendo de dor de cotovelo de ter artistas tão importantes aqui no meio pisando no barro junto com a gente”, disse o dirigente na ocasião.

Ainda na segunda-feira, estiveram presentes na ocupação as atrizes Letícia Sabatella, Alinne Moraes, Sônia Braga e a cineasta Marina Person. “Uma coisa fundamental na vida é comida e moradia, mas também ter o direito de se divertir, de sair com suas crianças… Tem muitas coisas erradas e a única certa que estou vendo é essa ocupação e suas propostas. Eu não posso ser 100% feliz se o outro também não for,” disse Sônia Braga.
Fotos: Danilo Ramos
Edição: Simone Freire